quarta-feira, 2 de abril de 2008

Relato de Infância

Acordou com um estrondo. Que seria? Tinha medo que fossem "os maus" que lhe tivessem invadido outra vez a casa. Ficou na cama, tinha tanto medo. Outro estrondo. Vários gritos se sucederam. Eram os pais a gritar um com o outro. Levantou-se devagarinho, agora tinha ainda mais medo que antes. Foi à casa-de-banho. Ficou petrificada, escandalizada e profundamente triste. A sua mãe estava junto à banheira, com um braço apoiado na mesma e o outro a segurar num dente. Teriam sido os maus? Porque estaria o pai a gritar tanto? E a mãe, será que lhe tinha caído um dente? Então teria uma prenda da Fada Dentinho... Mas porque estaria ela a sangrar tanto? Paralisou à frente da mãe, ao lado da porta da Casa-de-banho.
-Mãe, que aconteceu?
-Nada, vamos embora daqui.
Porquê? Tinham acabado de se mudar para aquela casa, construída pelo pai. Não cabia na cabeça de uma menina de 4 anos compreender tudo tão cedo.
A mãe agarrou-lhe no braço e levou-a para o quarto de casal. Trancou a porta. Começou a fazer as malas. O pai batia na porta com toda a força. Dizia palavrões.
-Porque é que o pai está tão zangado?
-Porque é um cabrão! VAI-TE EMBORA DAQUI!
-Posso levar os meus bonecos, mamã?
-Claro..
Ao menos isso. A mãe sangrava da boca, ainda. A camisola estava já manchada pela dor e a agonia que só uns anos depois a criança compreendeu bem.
A mãe abriu a porta. O pai estava manchado com o sangue da mulher. Porque estaria tudo aquilo a acontecer? Será que o pai ou a mãe teriam feito alguma coisa mal? Seria por sua causa?
- Onde estão as chaves, caralho?
-Não penses que te vais embora assim.
-Dá-me as chaves!
-Nem penses!
-Então saímos pela janela.
Ele dá-lhe uma estalada. A mãe deveria ter feito algo muito mau... Mas o quê?
-Não sais, digo-te.
E depois, tudo se lhe apagou, nada mais lhe é dado pelas páginas amarelas da memória.
Anos depois, a imagem continuava nítida. Ainda mais nítida, agora já percebia tudo. O pai, que nunca tinha sido para ela um pai, tinha problemas. Tinha batido à sua mãe apenas porque sim. E nunca, mas nunca, lhe perdoaria por aqueles momentos de agonia profunda que hoje ainda, provocam arrepios e choros e dores à eterna menina.
Adriana Matos.

2 comentários:

Ivan Mota disse...

Melodramatismo soberbo!
Escreves muito bem Adriana.
Vou passando pelo blog.

Cuidado com os teleféricos.

Anónimo disse...

Fiona Apple! Agora sim, passarei a vida no teu blog. :D

O começo infantil e inocente que vai sendo construído de forma a tomar as proporções que toma é algo de verdadeiramente genial.
Está muito muito bom.